23 de abr. de 2010

Os cristãos novos e a formação das sociedades secretas no Brasil Colonial

A conversão forçada ao Cristianismo de todos os judeus portugueses em 1497 criou uma nova categoria de gente e uma nova religião:
os cristãos-novos e o criptojudaísmo.

Isolados do Judaísmo tradicional
(proibido em todo o Império português) e imersos em um mundo cristão, a crença desses cristãos-novos sofreu alterações profundas.
Tinham que ser católicos praticantes; não tinham livros judaicos, não havia ninguém para instruir seus filhos no hebraico, sem as tardes de sábado para o estudo e debate; o Judaísmo que chegava até eles não era profundo nem ortodoxo, mas uma transmissão oral de conhecimento daqueles que lembravam melhor as tradições judaicas.

A religião dos cristãos novos era a "religião marrana", religião secreta que não foi uniforme nem no tempo nem no espaço.
A essência dessa crença pode ser resumida na salvação através da Lei de Moisés e não através da Lei de Cristo:
confissão em uma fé judaica, continha a linguagem e a concepção da teologia católica.

Esses portugueses de origem judaica foram perseguidos e processados pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição durante quase três séculos, acusados de um crime:
a heresia judaica.
A intolerância religiosa que reinava na Metrópole transferiu-se para o ultramar.

Em Portugal e suas colônias, a Inquisição perseguiu todos os "diferentes":
os que professavam uma outra fé Judaísmo, Luteranismo, Islamismo e os que apresentavam comportamentos considerados desviantes, como homossexuais, blasfemos, bígamos, feiticeiras e padres solicitantes.

Pesquisas recentes mostram que os cristãos novos representavam cerca de 20% da população branca e livre do Brasil colônia, o que ressalta a importância do conhecimento desse grupo para a história do Brasil.

Grupo que vivia dividido entre o mundo católico e a memória judaica.
Discriminado por sua ancestralidade, estava assimilado à cultura ibérica, porém não integrado no mundo cristão.
Apresentava uma dualidade inerente à sua condição cristã nova, dividido entre um mundo judaico secreto e um mundo cristão aparente.
Essa dualidade refletia-se em sua vida cotidiana, vivenciada diversamente por cada um deles, o que é possível perceber através de suas histórias, reveladas nos seus processos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal.
Sua fragilidade era evidente, passíveis de serem presos pela Inquisição devido a sua origem, Era preciso ser "limpo de sangue" para sobreviver sem sobressaltos.

Todos viviam em uma realidade cristã, na qual haviam crescido.
Batizados ao nascer, crismados, faziam todas as obras de bons católicos.
Confessavam seus pecados aos párocos das vilas, que muitas vezes iriam aos engenhos dizer missa.
Nas grandes festas religiosas católicas, como por exemplo na Páscoa, celebravam em conjunto.

Apesar de assimilados à sociedade ampla católica, a discriminação legal que atingia todos os descendentes de judeus não permitia sua integração completa.
A memória histórica alimentou-os durante três séculos no Brasil colonial, e a consciência de sua diferença era essencial para que pudessem responder perante o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.

A exigência por parte do Tribunal de que mantivessem uma memória do Judaísmo para poder confessar quando presos ou, a existência de uma religião secreta realmente vivenciada, fazia com que os cristãos novos se juntassem em comunidades secretas. Essas serviam também como modo de resistência à perseguição inquisitorial

As sociedades secretas foram o produto de um longo processo, que durante dois séculos preservou a herança de seus antepassados.
Este processo começou desde a formação dos primeiros núcleos em São Vicente, São Paulo, Bahia e Pernambuco.
Os cristãos novos chegaram como colonizadores, aventureiros ou fugitivos da Inquisição e espalharam-se por toda a colônia.


Desde o século XVI os cristãos novos reuniam-se secretamente, fosse para professar sua religião em segredo, fosse para elaborar estratégias de como sobreviver em uma sociedade preconceituosa.

Assim, no século XVI, encontramos no Nordeste verdadeiras "sinanogas" geração próxima da conversão forçada, cristãos-novos que tiveram contato com seus avós ou pais judeus.
O Judaísmo era mais presente e mais parecido com o tradicional.

Em Pernambuco do século XVI, um velho manco passeava avisando das datas das celebrações com um lenço vermelho amarrado à perna.
Branca Dias e seu marido Diogo Fernandes mantinham os costumes judaicos e se reuniam para celebrar o shabbat.
Na Bahia, a família Antunes mantinha em seu engenho, ao lado da capela, uma snoga; diziam-se descendentes dos Macabeus bíblicos.
Praticavam vários costumes judaicos, como abençoar os filhos passando a mão pelo rosto, da cabeça ao pescoço, rezar orações judaicas movimentando o corpo à maneira dos judeus e mostravam repulsa a símbolos cristãos, como o crucifixo entre tantos outros.

No Nordeste, a denúncia de cristãos novos idolatrarem a "toura"
sob a forma de um bezerro ou vaca, que nada tem a ver com a Torah, livro sagrado do Judaísmo, o Pentateuco também é indício que se reuniam para, secretamente, praticar o criptojudaismo.

No Rio de Janeiro do inicio do século XVII, criptojudeus reuniam-se na casa do médico Manoel Leitão para celebrar o Shabbat, todas as sextas-feiras.
Diziam que participavam de jogos de cartas

Fazia parte desse grupo Izabel Mendes e sua família.
Izabel ainda sonhava em manter-se judia.
Acreditava que a Lei Velha era a perfeita, e a que guardavam os profetas.
E que a Lei de Moisés era a boa, e que tudo o mais era vento.

Por observância da Lei, realizava rituais bastante próximos do Judaísmo tradicional, como a preparação para o sábado, que guardava como dia santo, vestindo nele roupas limpas, acendendo as candeias, assim como os demais cristãos novos com os quais se reunia para celebrarem seu criptojudaismo.

Mantinha em seu imaginário a representação de um Judaísmo, embora já apresentando traços de sua educação cristã e de sua cultura ibérica.
Dizia que o templo de Salomão estaria em Lisboa, e não em Jerusalém.

Sua irmã, Beatriz da Costa, casou-se com o espanhol Duarte Ramires de Leão em 1617. Duarte tinha o nome judaico de Binyamin Benveniste.
Um de seus filhos, Gregório Mendes de Leão, comerciava em Amsterdã, onde tinha um nome de judeu Nicolas Hermans e professava a Lei de Moises fato conhecido no Rio de Janeiro.
No século XVII o contato entre os cristãos novos do Brasil e os de Portugal e Europa eram frequentes, reforçando o conhecimento que tinham do Judaísmo, inclusive as datas das celebrações.

Nas Minas Gerais do século XVIII, segundo Anita Novinsky, as sociedades secretas seguiam a rota do ouro.
Reuniões clandestinas eram imediatamente organizadas em cada cidade ou aldeia fundadas nas regiões produtoras de ouro, como por exemplo, em algumas casas em Ouro Preto, arraial do Tijuco (região de mineração de diamantes), Rio das Mortes e Ribeirão do Carmo.
Durante essas reuniões, ocorriam transações comerciais; a confiança era estabelecida, e ao mesmo tempo se consolidava a resistência, e um "sentimento" particular do mundo: o marranismo.
Entre os participantes desses grupos clandestinos havia criptojudeus convictos, descrentes, agnósticos, e outros cristãos
novos identificados como judeus, não por sua conduta ou crença, mas devido a sua origem.

Encontramos indícios da continuação dessas sociedades secretas em outras localidades do Brasil durante a primeira metade do século XVIII.

Catarina Soares Brandoa, portuguesa, meia cristã-nova, descreveu uma festa de casamento ocorrida no Rio de Janeiro que se configura como uma das maiores reuniões entre os cristãos novos, para comemorar o casamento de Caterina Marques, filha do homem de negócios José Gomes Silva nesta festa, à maneira judaica, homens mantiveram-se separados das mulheres, declararam-se judeus e criticaram o catolicismo, dizendo que o vinho era o sangue de Jesus.

No Rio de Janeiro, Tereza Paes de Jesus foi ensinada no Judaísmo por um grupo de mulheres, e com elas professava sua nova crença.

Ana Izabel de Siqueira, filha do médico Francisco de Siqueira, que morava em Lisboa desde criança, quando foi para lá junto com a mãe, Catarina de Miranda, presa pela Inquisição, foi denunciada por reunir-se regularmente às sextas-feiras e sábados, estando com os melhores vestidos e roupa lavada, se fechavam em certa casa onde ela, ré, e companhia, se acautelavam de que as vissem, de que se ficou entendendo que ela, ré e a companhia se acautelavam tanto para melhor guardarem os sábados.


No Rio de Janeiro do início do XVIII, a ameaça inquisitorial levou um grupo a se unir, secretamente, para definir estratégias, e prepar uma conjuração.

Em 1711, vários cristãos novos estavam presos à espera da frota que os levaria a Lisboa, quando a cidade foi invadida e tomada pelos corsários franceses comandados por Duguay-Trouin, que libertou os prisioneiros.
Ao saírem do cárcere, já não tinham nada: seus bens haviam sido confiscados, alguns já leiloados pelo Fisco, embora algumas casas na área rural ainda estivessem desocupadas.
Foi para onde se dirigiram.
Reuniram-se para definir estratégias, pois desconfiavam que quando os corsários partissem seriam novamente presos.
Estavam particularmente receosos dos depoimentos dos cristãos novos que ainda não haviam sido presos, e decidiram ameaçá-los para que nada dissessem sobre eles se interrogados.
Assim, a família Correa Ximenes, que havia sido presa, ameaçou a família Barros, ainda livre.
Disseram "que a criminariam em forma neste Santo Tribunal, que teriam seus bens confiscados", e que "quem tem telhado de vidro não atirava pedradas ao telhado de seu vizinho"

Conheciam o funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, sabendo que para salvar suas vidas, deviam denunciar a todos que conheciam, confessar o que os Inquisidores desejassem.
Quando chegaram os navios, foram todos novamente presos e enviados para Lisboa.
E, conforme o prometido, denunciaram os Barros, que foram presos em seguida.

Um outro caso também mostra como os cristãos novos utilizavam o conhecimento tanto do funcionamento do Tribunal como do criptojudaísmo para a sua sobrevivência.
Isabel de Barros Silva era filha de José Gomes Silva, um dos homens mais ricos do Rio de Janeiro, mercador, contratador e senhor de engenho.
Casou-se com Bento de Lucena, senhor de engenho, quando tinha 16 anos.
Tiveram cinco filhos.

Isabel da Silva foi batizada e crismada na Sé do Rio de Janeiro.
Não sabia ler nem escrever; mas administrava um patrimônio considerável.
Um engenho, escravos, gado.
Mantinha uma casa na cidade, com sete escravos, entre eles costureiras e rendeiras. Fazia negócios, comprava e vendia escravos, contratava serviços para o engenho, enviava mercadorias para serem vendidas nas minas de ouro.

Ao ser presa em 1712, tinha 27 anos.
Sabia muito bem o que deveria dizer no Tribunal da Inquisição.
Foi entregue nos cárceres dos Estaus, em Lisboa, no dia 11 de outubro de 1712; no dia 17 de outubro, iniciou sua confissão.
Metodicamente, denunciou a todos que conhecia.
Começou pelos pais.
Satisfez os inquisidores, não foi submetida à tortura e em julho de 1713 saiu em Auto de Fé, condenada a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, tendo tido todos os seus bens confiscados.

Após a penitência, Isabel da Silva ficou morando em Lisboa.
Casou-se com Antonio de Morais, com quem não teve filhos.
Preocupava-se com seus filhos pequenos que haviam ficado no Rio de Janeiro.
Viúva novamente recebeu licença para voltar para o Brasil.

Izabel foi morar com os filhos em um engenho em Irajá.
Era o Campinho, engenho que havia sido confiscado pela Inquisição a Agostinho de Paredes e arrendado ao fisco por um cristão velho, Joaquim de Almeida Soares.
Por volta de 1723, uma das filhas de Izabel, Esperança, então com 18 anos, mantinha trato ilícito com o dono do engenho em que moravam.

Izabel preocupava-se também com seus sobrinhos, filhos de sua irmã Catarina Marques, que havia morrido em 1712, no navio em que ia presa para Lisboa.
Moravam com seu tutor, o padre Matias Gonçalves, cura da freguesia de Jacarepaguá, no engenho em que haviam nascido e se criado.

Um de seus sobrinhos, José da Silva, foi preso em 1723 (cerca de dez anos após a prisão da mãe) e penitenciado pela Inquisição de Lisboa.

Isabel da Silva considerou que a melhor maneira de seus filhos e sobrinhos se livrarem de uma pena maior e das torturas seria se eles se apresentassem ao Tribunal do Santo Ofício, isto é, que voluntariamente confessassem suas culpas, pois certamente, mais cedo ou mais tarde seriam presos (a Inquisição prendia sempre todos os membros de uma família).

Izabel elaborou um rol de pessoas para os filhos e sobrinhos denunciarem, e uma lista de práticas judaizantes para confessarem.
Instruiu-os sobre o que dizer na Mesa do Santo Ofício.

Após se apresentarem ao comissário do Santo Ofício no Rio de Janeiro, foram enviados para Lisboa, confessaram e denunciaram todos os cristãos novos que conheciam e em poucos meses foram condenados e penitenciados em Auto privado de Fé.

Imprudentemente, havia discutido o assunto com o tutor de seus sobrinhos e com o dono do engenho onde morava e um sobrinho deste.
Eles, entretanto, ficaram com medo do Tribunal.
Apresentaram-se ao Comissário no Rio de Janeiro e contaram ter participado de conversas com Izabel onde ela lhes contara seus planos.

Foi presa novamente em 1723 e enviada para Lisboa.
Ali chegando, confessou imediatamente o que fizera:
ensinara os filhos e sobrinhos em como enganar os inquisidores; fizera com que confessassem práticas e crenças que não tinham, que denunciassem pessoas que sequer conheciam, tendo para isso feito um rol de pessoas.
Declarou:

aconselhou seus filhos e sobrinhos para que se apresentassem, sendo que se tinham culpas pertencentes a esta Mesa, o que ela não podia saber pela educação que lhes dava, apresentando-se se livrassem da vexação de serem presos e não tendo culpas ficavam vivendo na lei de Cristo Senhor Nosso em que os tinha ensinado

Os inquisidores condenaram Izabel da Silva, porque induziu a seus filhos e sobrinhos para que denunciassem na mesa do Santo Ofício contra pessoas contra quem os mesmos depuseram.

Nas suas declarações, reafirmou que os filhos e sobrinhos viviam na Lei de Cristo, assim como ela; após a primeira prisão nunca mais havia judaizado.
Os inquisidores não a acusaram de heresia judaizante, mas sim de ter atentado contra a idoneidade do tribunal:

não declarou a verdadeira tenção que teve em aconselhar o sobredito falsamente, presumindo-se que ela ré maquinou por querer perturbar o reto ministério do Santo Ofício e desacreditar o procedimento e interesse de seus ministros

e mais estava convicta no crime de induzir pessoas a jurar em falso na mesa do Santo Ofício em matérias de heresia.

Isabel da Silva foi condenada ao açoite público e ao degredo de dez anos para o Algarve.
Saiu no Auto de Fé de 18 de maio de 1727 e quatro dias depois chegou ao Algarve.

Os filhos e sobrinhos, após terem sido penitenciados em 1723, continuaram a morar em Lisboa.

Os Inquisidores aceitaram a confissão de Izabel, e não acusaram os filhos e sobrinhos de heresia, mas sim de falsidade, e eles foram novamente presos.

Os cristãos novos do Rio de Janeiro, que após terem sido presos estavam em Lisboa, sabiam das denúncias que a família havia feito contra eles.
Chamados para depor, disseram que conheciam a história do rol; que os filhos e sobrinhos de Izabel não conheciam as pessoas a quem tinham denunciado porque viviam isolados nos engenhos.
Haviam mentido e prejudicado vários inocentes.

Assim, durante todo o período colonial os cristãos novos reuniam-se secretamente para transmitir o conhecimento do Judaísmo, mantendo uma memória que pesquisas feitas atualmente demonstram que, em parte, está ainda viva no seio de algumas famílias católicas, como reminiscências da antiga fé judaica.



Lina Gorenstein A Inquisição contra as mulheres.
São Paulo, Humanitas, 2005, p.319 e seg.

Anita Novinsky Inquisição
- Prisioneiros do Brasil, séculos XVI- XVIII.
Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 2002 e Lina Gorenstein "O Brasil marrano
- as pesquisas recentes"
- comunicação apresentada no Seminário Interno do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, 2005 e publicada no site http://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br

Anita Novinsky Cristãos-novos na Bahia São Paulo, Perspectiva, 1972, cap.
"O Homem dividido" e Lina Gorenstein A inquisição contra as mulheres, op.cit.,p.387 e seg.

Anita Novinsky "Ser marrano em Minas Colonial" in Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Humanitas, n.40, julho de 2001, pp.161-176.

Primeira Visitação do Santo Oficio às Partes do Brasil
- Denunciações e confissões e Pernambuco (1593-1595).
Recife, Fundarpe, 1984
(introdução José Antonio Gonsalves de Mello), p.30 e seg.

Ângelo Adriano Faria de Assis Macabeas da Colônia:
criptojudaismo feminino na Bahia
- séc.XVI-XVII.
Niterói, UFF, Doutoramento, 2004, mimeo.

Primeira Visitação, op.cit., p.48

Lina Gorenstein A inquisição contra as mulheres, op.cit., p.63

Idem, p.74 e seg.

Anita Novinsky "Ser marrano em Minas colonial", op.cit.

Lina Gorenstein A inquisição contra as mulheres, op.cit., p.163 e seg.

Idem, 373 e seg.

Ibidem, p.346

Lina Gorenstein Ferreira da Silva Heréticos e Impuros - Inquisição e cristãos-novos no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Séc. Municipal de Cultura, Depto de Informação e Editoração, 1995, cap. 5 "A Igreja contra o Judaismo", p.101-113

Lina Gorenstein A Inquisição contra as mulheres, op.cit., p.274 e seg.

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